Violência contra a mulher cresce nas classes mais altas
“Violência doméstica é uma daquelas coisas que a gente acha que só acontece na casa do vizinho”. Há dez anos, quando a Lei Maria da Penha foi criada, a empresária *Paula, 31, autora da frase acima, era apenas uma jovem. Por acreditar ser algo distante da realidade dela, nem imaginava que precisaria, um dia, recorrer à norma para escapar de um relacionamento abusivo.
Este ano, ela venceu o medo e o preconceito e se viu adentrando, pela primeira vez, em uma delegacia de polícia. Por causa de agressões físicas e verbais sofridas durante os quatro anos de casamento, Paula prestou uma queixa contra o ex-marido. Hoje, ele está proibido de chegar, a pelo menos, 250 metros de distância dela.
Formada em administração e pós-graduada em marketing, a empresária tinha casa própria e uma vida confortável antes mesmo do casamento. A separação não mudou a condição de vida dela, mas deixou marcas físicas e psicológicas.
O registro feito por Paula integra um novo perfil de denúncias que vem se formando ao longo dos 10 anos da lei: elas partem de mulheres oriundas de famílias de classe média alta, bem sucedidas profissionalmente e que, por isso, não dependem financeiramente do ex-marido.
Titular da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam) de Brotas, Heleneci Nascimento observou, nos últimos anos, o crescimento de registros que partem de mulheres “independentes”. Segundo a delegada, este ano, a unidade já recebeu 3.112 registros de violência doméstica, que vão desde agressão verbal a estupro. Pelo menos 30% das queixas procedem desse perfil de vítima.
“Antes, elas escondiam as agressões sofridas pelos companheiros durante anos, por medo de atitudes machistas da família. Hoje, muitas delas se sentem mais encorajadas para enfrentar a família e a sociedade, pois entendem a importância de obter o amparo legal para fugir da violência doméstica”, explicou.
Apesar das conquistas obtidas com a lei, o número de mulheres mortas em casos de violência doméstica registrados nas 15 Deams do estado cresceu 26,09% na comparação do primeiro semestre deste ano com o mesmo período do ano passado. Subiu de 23 para 29 casos (ver mais abaixo).
Mulheres negras
Para a pesquisadora Márcia Tavares, do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (Neim), da Universidade Federal da Bahia (Ufba), os registros da Deam comprovam uma triste realidade: que a violência doméstica contra a mulher não escolhe cor ou classe social. “Qualquer uma de nós está passível de sofrer esse tipo de violência”, disse.
Segundo ela, no entanto, as mulheres negras, as que desempenham atividades precarizadas e que dependem financeiramente dos companheiros ainda são maioria entre as violentadas. De acordo com o Mapa da Violência 2015, elaborado pela Faculdade Latino-Americana de Estudos Sociais, o número de mulheres negras mortas cresceu 54% em 10 anos (de 2003 a 2013).
No total, 55,3% dos crimes contra mulheres foram cometidos no ambiente doméstico e, em 33,2% dos casos, os homicidas eram parceiros ou ex-parceiros das vítimas.
Denúncias
Em 2006, ano em que a Lei Maria da Penha entrou em vigor, 328 queixas realizadas na Deam de Brotas se tornaram inquérito policial. Hoje, há 1.532 em tramitação. Há 10 anos, foram expedidas 122 medidas protetivas a mulheres violentadas em ambiente doméstico que denunciaram as agressões naquela delegacia. Em 2015, foram 572. No primeiro semestre deste ano, esse número já chega a 310.
Conforme a titular da delegacia, o crescimento dos números aponta para uma maior confiança da vítima em relação à resolubilidade da lei. “O crescimento do número de denúncias não significa, simplesmente, que o número de mulheres violentadas aumentou. O que percebo é que elas estão mais informadas sobre a lei. Em 10 anos, vejo que há um maior empenho para fazer a lei acontecer e isso tem dado um conforto a elas”, disse Heleneci.
* Nome fictício