Médicos de 3 planos receitam tratamento precoce antes mesmo de exame de covid

Reportagem: Gabriella Soares, Poder360

A distribuição do chamado “kit covid” se tornou o procedimento comum de atendimento em ao menos 3 planos de saúde: Prevent Senior, Unimed Rio e Hapvida. Pacientes com sintomas gripais saem de consultas presenciais ou por telefone com um coquetel de até 8 medicamentos. O “tratamento” começa antes mesmo de o teste de covid-19 ser realizado.

Com presença em 14 Estados, as 3 operadoras atendem, juntas, cerca de 5,3 milhões de pessoas, segundo as próprias empresas. Os atendimentos têm pequenas diferenças, mas os profissionais das 3 redes prescrevem medicamentos que não têm eficácia cientificamente comprovada contra o coronavírus. Além disso, os medicamentos do kit podem ter efeitos colaterais sérios para a saúde dos pacientes.

O Poder360 conversou com 12 médicos, pacientes ou familiares de pacientes que receberam uma receita ou o “kit covid” das operadoras de saúde. Todos relataram que os medicamentos foram oferecidos antes da realização do teste.

O chamado “tratamento precoce” contra a covid-19 é defendido pelo presidente Jair Bolsonaro. “Não desistam do tratamento precoce, não desistam. A vacina é para quem não pegou [covid-19] ainda”, disse o chefe do Executivo federal em 18 de janeiro. “Por que não pode ter um tratamento imediato? Olha a questão do ‘off label’, fora da bula. Isso é um direito, dever do médico. Ele tem que buscar uma alternativa”, reforçou Bolsonaro na última 4ª feira (7.abr).

A mãe de Andreia Cristina dos Santos foi atendida na unidade da Prevent Senior em Santana, na zona norte de São Paulo, em 21 de março. Com 65 anos e hipertensa, a mulher recebeu um kit com 8 medicamentos para tomar por 5 dias. O teste para a covid-19 foi realizado apenas no dia seguinte, mas o médico pediu que ela começasse a tomar os remédios imediatamente, antes mesmo do resultado.

O kit fornecido pela Prevent Senior, pelas receitas e protocolos entregues aos pacientes, inclui hidroxicloroquina, azitromicina, prednisona, vitaminas C, D e zinco, colecalciferol (tipo de vitamina D), ivermectina e colchicina. Além disso, também são receitados suplementos alimentares.
Andreia é estudante de auxiliar de enfermagem e pediu que a mãe não tomasse a hidroxicloroquina. “Porque vemos nas pesquisas que não tem fundamento, e tem pessoas que ficam até pior. Os outros medicamentos ela tomou, mas ainda assim não melhorou“, conta.

A mãe de Cristina precisou voltar ao pronto-socorro da Prevent. O coquetel do “kit covid” não ajudou em sua recuperação. Ela teve o diagnóstico de covid-19 confirmado e foi constatado que estava com 25% do pulmão comprometido. Os médicos então interromperam as medicações e continuaram o tratamento apenas com um medicamento voltado para doenças respiratórias. Agora, seu quadro clínico está melhor.

O infectologista José David Urbaez Brito, que integra a SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia), alerta para os riscos de usar remédios para tratamento preventivo ou em pacientes que não estejam internados. Até o momento, o único medicamento aprovado pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para tratar pacientes infectados pelo coronavírus é o remdesivir.

“O medo se tornou delírio e muitas pessoas acreditam que esses medicamentos têm algum efeito. Não têm. É preciso entender isso“, diz.
Também de acordo com os relatos colhidos pela reportagem do Poder360, a maior parte das pessoas não recebe nenhuma informação sobre possíveis efeitos colaterais ou contraindicações dos medicamentos.

Foi isso que preocupou a família de Giovanna Mandarino. Beneficiária da Unimed Rio, a jovem de 21 anos foi ao pronto-socorro da seguradora em 17 de março. Seu único sintoma era tosse persistente por 3 dias. Antes mesmo de fazer o teste para coronavírus, ela recebeu uma receita com azitromicina, ivermectina e outros.

Giovanna decidiu tomar apenas o remédio indicado para tosse. O resultado de seu teste deu positivo, mas em poucos dias ela já não sentia quase nada. Já sua mãe, Tereza, de 59 anos, recebeu exatamente a mesma receita e tomou todos os medicamentos.

“Ela piorou. Ficou muito cansada, muito enjoada, não conseguia comer“, conta Giovanna. Sua mãe precisou retornar à Unimed Rio e os médicos suspenderam a medicação, mas, como ela não melhorou, foi internada em um hospital da rede. Tereza teve alta na 5ª feira passada (1º.abr.2021) e agora se recupera em casa.

Os pais de Tatyana (que prefere não informar o sobrenome) receberam receitas praticamente idênticas na Prevent Senior. O coquetel foi receitado antes do teste de covid-19. Ela afirma que não queria que os pais tomassem os remédios, mas eles receberam o kit no pronto-socorro e começaram a se medicar imediatamente.

“Entregaram uma receita com os horários. Em nenhum momento falaram sobre qualquer tipo de reação. Não foi explicado nada sobre os remédios“, diz. O pai de Tatyana, de 70 anos, tem histórico de doenças cardíacas e ainda assim tomou durante 5 dias a hidroxicloroquina, que pode provocar arritmia.

Para Brito, a prescrição indiscriminada de medicamentos sem eficácia comprovada precisa ser analisada pela Justiça. “Há diversas provas de que além de não ter eficácia contra a covid-19, esses remédios prejudicam a saúde. Muitas pessoas desenvolvem hepatite, vão parar na UTI e até precisam de transplante“.

Segundo o Painel de Notificações de Farmacovigilância da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), de março de 2020 até a última 2ª feira (5.abr), foram notificadas 962 reações adversas em pacientes que usaram os medicamentos do “kit covid”. Os registros mostram ainda que 11 pessoas morreram depois de tomar os medicamentos. Houve ainda 146 registros de reações graves.

PARA TODOS OS SINTOMAS E IDADES
O médico geriatra Renato Laks, que integra o corpo clínico do Hospital Albert Einstein e do Sírio-Libanês, afirma que em 2020 atendeu, em média, 3 pessoas por mês com reclamações de terem recebido o “kit covid” da Prevent Senior. “Muitas vezes, nem exames eles realizam. Só entregam o kit. Pessoas que depois são diagnosticadas com outras doenças e a Prevent queria tratar com esses medicamentos“.

Em nota, a Prevent afirmou que a rede se baseia em “sólidas evidências clínicas e científicas” para prescrever os medicamentos. Também afirmou que tem tido resultados positivos. “Nossos dados demonstram que a taxa de mortalidade entre os pacientes atendidos com covid acima de 60 anos é 50% menor do que a observada no Estado de São Paulo“.

No entanto, Laks afirma que já tratou pacientes que receberam o kit, mas não estavam com covid-19. Assim, os dados da empresa não seriam confiáveis. “Eles prescrevem para todo mundo, inclusive para quem não tem a doença. E depois dizem que a letalidade deles é menor. Mas se a pessoa não tem a doença, você não pode comparar com os dados do Estado“.

Um estudo realizado pela Prevent Senior foi questionado por cientistas brasileiros e de outras nacionalidades. Uma das críticas era que não havia provas de que os pacientes acompanhados tinham realmente covid-19. Em abril do ano passado, o Poder360 revelou o protocolo interno da Prevent para tratar pacientes com cloroquina desde o 1º atendimento, sem menção ao teste de covid-19.

Outro problema é que funcionários das empresas prescrevem o mesmo coquetel de medicamentos para pessoas com diferentes idades e históricos médicos. Jovens de 21 anos, mulheres saudáveis de 35 anos e pessoas idosas de até 74 anos com diferentes doenças relataram ao Poder360 terem recebido os mesmos medicamentos e as mesmas doses.

Foi assim com um paciente de 21 anos que foi atendido pela Hapvida em Pernambuco. O homem, que prefere não se identificar, recebeu a receita depois de relatar dor de cabeça e garganta inflamada. A prescrição foi dada antes que ele fizesse o teste de covid-19.

A Hapvida ministra a hidroxicloroquina dentro da unidade. Assim, quando foi encaminhado para a sala de medicação, o paciente recebeu um termo de consentimento para uso do medicamento. O documento lista uma série de efeitos colaterais possíveis e isenta a equipe médica de possíveis reações.
Mas ele recusou a medicação e não assinou. “Eu falei que não ia tomar, porque o resultado do teste nem tinha saído ainda. Já queriam me medicar com um remédio com vários efeitos, sem saber se era covid mesmo. E depois meu teste deu negativo. Era uma crise alérgica, como eu pensava“, conta.

“E medicar uma pessoa com até 8 medicamentos para uma infecção aguda, mostra que o médico não sabe o que está fazendo. Você utilizar o mesmo tratamento para pessoas de idades e com doenças diferentes não existe. Está completamente errado“, diz o infectologista José David Urbaez Brito.

ASSÉDIO CONTRA MÉDICOS
Muitas vezes a prescrição do kit não é uma escolha livre da equipe médica. O tratamento com hidroxicloroquina na Hapvida é o procedimento comum para casos suspeitos de covid-19. O Poder360 conversou com médicos de 2 Estados –Santa Catarina e Ceará– que já trabalharam ou trabalham atualmente na empresa. Eles informam que esse é o protocolo desde o início da pandemia.

“O protocolo de covid começa quando você coloca qualquer sintoma de síndrome respiratória, de gripe, independente do que for, ele te joga nessa mesma receita. E se você opta por não receitar esses medicamentos, você tem que justificar no sistema“, diz um médico que prefere não se identificar para evitar represálias.

A justificativa é exigida porque os prontuários são auditados e, até 2020, os médicos tinham uma meta do quanto receitar de cloroquina. “Se você passasse menos cloroquina do que o esperado, pelo número de pacientes atendidos com os sintomas gripais, você era advertido“, conta outra médica que trabalhou na rede por anos.

Os médicos relatam ainda haver um constrangimento para que os medicamentos sejam receitados. “A prescrição do kit é algo que vem de cima, é nacional, vem da direção da Hapvida. Não é só aqui, é em toda a rede“.
Os profissionais contam ainda que a sua relação com o paciente e a independência para decidir um tratamento não é respeitada. A prescrição era exigida para todos os pacientes.

“Por isso que eu saí“, afirma uma das médicas. Ela conta que fazia questão de ler o termo de responsabilização para o uso da hidroxicloroquina. Após ouvir todos os possíveis efeitos colaterais, alguns pacientes decidiam que não queriam receber a medicação.

“Eu não podia dizer minha opinião porque a instituição não permitia e era algo que até me fazia questionar minha ética médica. O tratamento tem que ser decidido com o médico e o paciente, com base na verdade e o melhor para o paciente, mas a instituição não permitia isso.”

OUTRO LADO
Em nota, a Hapvida afirmou que respeita a soberania médica e que metade de seus 4.000 médicos escolheram adotar a hidroxicloroquina como tratamento para a covid-19. Disse também que o uso é apoiado por critérios do CFM (Conselho Federal de Medicina), que permite o uso em pacientes com o diagnóstico confirmado e sintomas leves. “Importante destacar que não há registros de internações resultantes de qualquer efeito colateral pelo uso do medicamento. A empresa acompanha atentamente a jornada de todos os pacientes até o desfecho de cada caso“.

A Unimed Rio afirmou que não recomenda a prescrição do chamado “kit covid” e que esse não é um protocolo da instituição. “Os exames solicitados e tratamentos instituídos são individualizados“, diz em nota.

A Prevent Senior afirmou que o uso de medicamentos pelos seus clientes salvou mais de 35.000 vidas. “A linha de atendimento inclui um amplo modelo de testagem em massa e atenção médica diária aos pacientes presencialmente e via telemedicina“, diz.

Perguntada sobre a prescrição de medicamentos antes do teste de covid-19, sobre a falta de eficácia comprovada e sobre a receita padrão entregue para os pacientes, a empresa não respondeu.